FOlha de SP, 06/04/2010
A vingança de Maluf
RODRIGO DE GRANDIS, SILVIO MARQUES e PEDRO BARBOSA
O Ministério Público é a voz da sociedade; a "Lei Maluf" só interessa a quem não quer um Ministério Público atuante e independente
EM QUALQUER ESTADO que se diz Democrático e de Direito, a lei deve expressar a vontade do povo e atingir o bem de todos, sem qualquer distinção. O comando normativo que busca satisfazer o interesse particular de determinada pessoa ou grupo de pessoas transforma-se em mera manifestação egoística, imoral e, assim, inconstitucional.
A advertência soa oportuna em virtude do projeto de lei n. 265/2007, de autoria do deputado federal Paulo Maluf, que, a pretexto de "garantir o uso responsável" das ações civis públicas, de improbidade administrativa e das ações populares, ostenta a indisfarçável finalidade de amordaçar a atuação do Ministério Público na proteção da coisa pública e dos princípios da legalidade, da impessoalidade e da moralidade administrativas. Em suma, objetiva alcançar, pela via do abuso de poder de legislar, a vingança privada.
Sim, a vingança privada, pois, como é de conhecimento público, Paulo Maluf e seus familiares encontram-se atualmente processados pelo Ministério Público pela prática de crimes contra a administração pública, "lavagem" de dinheiro, evasão de divisas, formação de quadrilha e pela perpetração de atos de improbidade administrativa.
Tais processos foram promovidos pelos signatários no exercício legal e regular de suas funções, após anos de investigação, em cujo contexto produziu-se inabalável conjunto de provas. Dezenas de pessoas foram ouvidas. Milhares de documentos bancários e fiscais foram examinados. Autoridades estrangeiras cooperaram com o Ministério Público brasileiro, que, ao final, pôde concluir: Maluf foi o beneficiário final de um grande esquema de desvio de recursos do município de São Paulo, que movimentou nos Estados Unidos, Suíça, França, Luxemburgo, Inglaterra e Ilha de Jersey mais de US$ 250.000.000,00.
Aliás, em tema de prisão, cumpre relembrar que o ex-prefeito e seu filho passaram a compor recentemente a lista de "procurados" da Interpol, por força de ordens de prisão emitidas pela Justiça de Nova York, em processo criminal legítimo que contou com provas obtidas a partir da investigação brasileira.
O texto da chamada "Lei Maluf" ou "Lei da Mordaça" está recheado de termos subjetivos, vagos, que proporcionarão interpretação segundo as conveniências ou inconveniências do momento e do sabor das circunstâncias. Fala-se, por exemplo, que o autor da ação popular ou da ação de improbidade administrativa será condenado nas custas dos processos e em honorários periciais e advocatícios, bem como em "danos materiais, morais ou à imagem que houver provocado", quando a ação vier a ser considerada "temerária, se comprovada má-fé, finalidade de promoção pessoal ou perseguição política".
A proposta do ex-prefeito paulistano chega a criar um "crime" no texto da Lei 8.429/92 (!), punindo com pena de detenção de 6 a 10 meses, além de multa, a representação por ato de improbidade ou a propositura de ação contra agente público ou terceiro beneficiário, quando o autor o sabe inocente ou "pratica o ato de maneira temerária".
Assim, promotores e procuradores da República têm cumprido o seu papel, e o Brasil já possui ferramentas para punir profissionais que não se pautam pelas normas jurídicas. O que não se pode admitir é a subversão do poder de legislar para atender interesses particulares daqueles que pretendem converter um repentino surto de moralismo em refúgio.
O Ministério Público é a voz da sociedade perante o Judiciário. Amordaçando um, cala-se a outra. A "Lei Maluf" só interessa àqueles que não querem um Ministério Público atuante e independente, como determina a Constituição brasileira.
SILVIO MARQUES, 44, é promotor de Justiça (SP), mestre e doutor em direito (PUC-SP);° PEDRO BARBOSA , 45, é procurador-regional da República.